sexta-feira, 26 de julho de 2013

PRÊMIO LUSO-BRASILEIRO MELHORES CONTISTAS 2013









Ao lado do ator Maurício Mattar, Mestre de Cerimônia,
e da Presidente da LITERARTE, Izabelle Valladaares.

A mulher que sonhava em cortar os cabelos
(Conto selecionado ao Prêmio Luso-brasileiro Melhores Contistas 2013)
                                                                                                                                                    
            Tudo aconteceu num diminuto aglomerado de casas encravadas numa porção de terra árida dos sertões nordestinos; o nome do lugar esvaiu-se da memória; o estado, também me é duvidoso, conjeturo entre dois ou três, mas, certezas mesmo, não me são precisas. Deixemos, então, de lado os pormenores; atenhamo-nos às personagens forjadas nessa seara de tradições ligadas à rica religiosidade de um povo simples; na fé e nas crenças populares e no machismo do homem rude que, embora numa época e região de onde não se tinha muito que prover, não abria mão do título de provedor da família. Levemos em conta que eram tempos difíceis, e motivos para acreditar em promessas e simpatias encontravam terreno fértil nesse “mundo de meu Deus”, onde o sol batia forte na moleira e cacunda da gente sofrida.
“Padim Padi Ciço”, Antônio Conselheiro e Lampião eram personalidades afamadas, fossem pela representatividade de força religiosa, carisma de líderes espirituais ou reputação de cangaceiro sanguinolento. A verdade é que em qualquer das vertentes, arregimentavam-se seguidores, defensores e ferrenhos opositores.
            O acima exposto serve apenas de ambientação do cenário aonde veio ao mundo Maria Clarissa, nascida prematuramente aos sete meses de gestação.
Na madrugada em que, sem aviso prévio, Clarissinha, ou, simplesmente, Sinha, resolveu não esperar que se completassem os nove meses, era noite de lua cheia. Nasceria, de ímpeto, naquela fase lunar, entre contrações repentinas.
O silêncio noturnal acompanhava-se de certo ar fantasmagórico, entrecortado, de quando em quando, pelo som rouco de rasga-mortalhas e por regougares de raposas à espreita de galinheiros; tais ecos somaram-se, de repente, aos gritos de dor de uma parturiente despreparada a dar à luz a filha esperada somente para dali a oito semanas.
A parteira mais próxima distava duas léguas. Quando esta chegou, buscada às pressas pelo pai, montados em lombos de mulas, o bebezinho já se debatia e choramingava nos braços da mãe. Era tão pixototinha, a ponto da roliça senhora não disfarçar o espanto e, utilizando-se da experiência ao longo dos anos de profissão e com um ceticismo visível no olhar, peculiar ao que a situação remetia, recomendar que se apreçassem em batizá-la para que não morresse pagã. Ao passo em que fazia tais advertências, sem utilizar-se de meias palavras, apressava-se ao recolhimento dos restos do parto e assepsia do delgado corpinho da criancinha.
Foi nesse momento que a menininha, pouco maior que a palma da mão do pai, fora entregue, sob promessa, às graças de Stª Clara, primeira Franciscana e fundadora da segunda Ordem Franciscana, a das Clarissas. Dessa intervenção veio o nome escolhido.
Num ato de amor à pequenina, imbuindo-se de muita fé na santa de devoção, a mãe prometeu, se sobrevivesse, sua filhinha jamais teria os cabelos cortados.
Correu à boca miúda pelas redondezas, que o rebento se deu avexadamente pelo fato de sua mãe não ter realizado o desejo de comer rapadura com carne de caça.
Passado o susto e seguidas as recomendações para um bom resguardo, especial atenção foi dispensada a alimentação da lactante; nos primeiros dias, canjas e escaldados de capão, frangos caipiras cevados pra esse fim, faziam-na lamber os beiços. Dizem não haver melhor alimento que revigore mulher parida.
Maria Clarissa, aos poucos, ganhou peso e cresceu saudável fazendo da sua mãe, cada vez mais devota, muito grata a Deus e a Santa Clara, renovando, a cada aniversário, a promessa feita.
O tempo passou, a menina tornou-se uma linda moça e ficou conhecida em todo o sertão como a “Menina de Stª Clara” e, mais tarde, a “Moça dos cabelos de trança”. Os fios se alongaram tanto, que pra facilitar-lhe a vida, mantinha-os em tranças enrodilhadas à cintura. Só não ganhou o apelido de “Rapunzel dos Sertões” porquanto o conto de fadas, dos Irmãos Grimm, não chegara àquelas terras. Às vezes, fazia das tranças, uma acolchoada rodilha a proteger-lhe a cabeça enquanto equilibrava na moleira as latas d’água que buscava diariamente na cacimba.
Com o curso natural da vida, Sinha se casou e teve filhos. Tempos depois seus pais faleceram, mas a promessa manteve-se de pé, embora, às vezes, a incomodasse; havia dias em que acordava com a cabeleira totalmente desgrenhada, pra desembaraçá-la, horas eram despendidas.  
            Anos mais tarde a família mudou-se pra pequena cidade da qual seu povoado era distrito, em lá chegando, a vontade de ter os cabelos cortados só aumentava, mas como quebrar a promessa? Não incorreria em pecado? Uma vez feita pela sobrevivência, não seria punida com a morte?
            Certa ocasião, um caixeiro viajante, amigo do seu marido, de passagem pela cidade, hospedara-se em sua casa, deixando cair em suas mãos, trazida das andanças pelos maiores centros, uma revista de moda, dessas com fotos de mulheres de cabelos bem penteados, estopim pra que sua vontade mudasse pra desejo ardente, um sonho a ser realizado, a ponto de externar em palavras como queria o corte; ouvindo do marido, pra sua frustração, a expressão proferida em tom autoritário: – muié minha num corta cabelo, inda mai de promessa feita, pra isso acuntecer, só pu cima do meu cadávi.
            Afoita ao desejo de se livrar do mafuá de fios e tranças, resolveu apelar à própria Stª Clara, se necessário, pagaria outra promessa, mas que lhe revelasse um sinal, através do qual pudesse se livrar da promessa de nunca cortar os cabelos sem consequências danosas a sua vida e fé.
            Passados poucos dias, o marido de Maria Clarissa sofre um acidente, atingido, na fronte, por violento coice de jegue empacado, veio a falecer. Enquanto se “bebia o morto”, compareceram ao velório parentes e amigos vindos de todo o sertão. A pergunta que não calava era: onde está Maria Clarissa, por que não a vemos ao lado do caixão?
            Somente após o sepultamento Clarissa reaparece ostentando novo visual, enquanto velavam o corpo, viajara pra cidade vizinha, onde havia um salão de beleza para, enfim, cortar os cabelos.









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